quarta-feira, 24 de novembro de 2010

>>> poema >>>

As plantas e a fome

por Rogério Alvarenga

Uma flor nasceu na rua. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Com essas palavras, Carlos Drummond de Andrade criticava a opressão e o "mundo cinza", há mais de 60 anos, através da poesia A flor e a náusea. Palavras atuais, num país que vive a guerra da fome, mesmo vendo flores romperem o asfalto e plantas nascerem em qualquer lugar - jardins, calçadas, ou até mesmo garrafas e potes velhos sem uso. A guerra da fome alcança cerca de um terço das famílias brasileiras, segundo o IBGE - números que, pasmem, já foram piores.


Presos às suas classes e a suas roupas, os cidadãos andam de branco pela rua cinzenta, mas esquecem que o marrom da terra, o verde das plantas e a transparência da água são os bens mais básicos dos quais precisam. Um pouco de terra, centenas de sementes compradas por míseros centavos, algumas gotas de água e um recipiente fácil de encontrar nos lixos - garrafa pet, pote de sorvete ou Tetra Pak - é tudo de que necessitam para começar essa empreitada.


Os homens voltam para casa menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo. Mas não conhecem suas necessidades mais básicas: a terra, a semente e a água. Ah, esqueci: como vivemos, hoje, trancados por paredes de concreto, é preciso conseguir um pouco de Sol, também. E, a partir de três meses, os primeiros vegetais plantados já poderão enfrentar as melancolias e as mercadorias à espreita. A couve parece ter vida eterna, se recompõe a cada folha retirada - que tal cozinhar no feijão? A chicória é forte, dá um belo recheio para panquecas e também tem vida longa. A mostarda é uma verdadeira praga de tanto que dá, mas praga mesmo é passar fome num país tão fértil.


Façam completo silêncio, paralisem os negócios: garanto que uma planta nasceu. E, com ela, a comida que falta para alguns.


Ler A flor e a náusea e outros textos de Drummond


[A imagem retrata uma chicória em crescimento numa garrafa pet com terra]

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